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Carta número 3 para o meu pai

    



     Você se lembra daquela noite de domingo? Uma das piores que passamos, acho que você estava com dor, mas eu não sabia o que fazer, você me pediu para te deixar sair daquele hospital, mas eu te amava e sabia que era ali que você tinha que estar. Você se lembra quando você se irritou comigo e arrancou o soro e me empurrou? Eu sei que não foi por querer, eu nunca levei pro coração, nem quando você me mandou ir embora dali, que não queria mais me ver, eu não levei pro coração.

     Você se lembra do último dia que a gente se viu? Em que você já estava cansado demais para falar, para respirar, para olhar e você foi tão corajoso em mentir para mim e dizer que não estava sentindo nada, que estava bem, mesmo que seu corpo dissesse ao contrário, essa coragem... eu levei pro coração, essa força de quem viveu e viu bem mais que eu, eu levei para o coração, essa preocupação em não me preocupar, eu levei para o coração.

      Os momentos da gente assistindo uma coisa besta, comendo pipoca, eu levei pro coração, seu orgulho de mim, sua doçura comigo, as reclamações também para me moldar a ser melhor... eu levei para o coração, mas, por favor, onde você estiver agora, diga que não levou minha mal criação para o seu coração, não levou minhas palavras ácidas nos meus momentos de raiva, não levou meus momentos de ódio, aqueles em que eu não sabia que um dia você não ia mais estar aqui.

      Eu continuo sonhando com você todas as noites, deve ser porque te levei para o coração, mas eu odeio sonhar com você, odeio te ver de longe e ficar me agarrando a vaga sensação que eu tenho que te segurar, odeio acordar e ver seu número no meu celular e saber que se eu ligar, ninguém vai atender, odeio que as músicas que salvei para lembrar de você são todas sobre pessoas que partiram. Eu odeio você ter se tornado apenas alguém da minha imaginação.

     Eu odeio ter te decepcionado, odeio ter sido assim, daquele jeito, desse jeito, do jeito que achava que ia ter mais tempo, eu odeio meu café, eu prefiro o seu, eu odeio acordar com alarme, eu preferia quando era você que acordava, eu odeio ter que receber minhas próprias coisas pelo correio, era mais legal quando você recebia e me ligava para abrir comigo, eu odeio essa vida em que você não estar e que as novas pessoas que entram nela não vão te conhecer, eu queria tanto que elas te conhecessem.

    Eu odeio ter levado só você e algumas camisas para o coração, eu queria ter levado mais para frente, mais para a vida, você valeu as noites mal dormidas, os delírios, você me amava anto e eu nem tive tempo de dizer que também amava você, mas você sabe que eu amava e que o que eu disse de mal, não foi querendo, foi meio escorregadio, foi carregado de cuidado, de preocupação.

    Eu odeio ter perdido você, antes mesmo de você ter ido, odeio que eu te vi numa prisão da sua mente, odeio não ter te obrigado a buscar ajuda, eu sei que você queria, mas eu não forcei, eu devia ter forçado, adiantaria alguma coisa?

     O último dia, o dia depois dele e o depois dele ainda estão presos na minha memória, meu tio disse que seria como um filme, que eu ia ver várias vezes até um dia ficar repetitivo e parar de doer, mas já faz quase um ano e ainda dói como na primeira vez e eu não consegui perder nenhuma parte, estão todas aqui, machucando, incomodando, me fazendo chorar até entrar em crise de pânico e esquecer como respira, aí coloco as mãos na cabeça, tapo os ouvidos e espero não ouvir mais nada, mas nunca funciona, e começa de novo, a ligação, a notícia, o espalhamento, você... ali, eu levei pro coração e não consigo mais apagar.

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