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29 de março

 


Hoje seu segundo neto nasceu, aquele que você não sabe o nome, não conhece o rosto, não sabe do que vai gostar, do que vai ter medo, aquele neto que você não vai conhecer. Hoje, eu estou sozinha em uma cidade cercada de prédios, encharcada de tristeza e escrevendo sobre pneumonia para a faculdade, ou pelo menos eu deveria estar, mas na verdade, estou chorando e escrevendo sobre a dor que toda vez vem me visitar e me lembra como foi perder você.

E o ciclo começa de novo

o telefone toca

eu atendo

"É da família de Seu Raimundo?"

e depois daí...aí a gente já sabe o que acontece, porque não aconteceu só dia 30 de maio, mas de uma forma torturante, acontece de vez em quando e eu ainda perco o movimento das pernas como eu perdi naquele dia.

O que eu vou ser sem ele?

Como eu vou ser sem ele?

Hoje, seu neto nasceu e eu me sinto dividida entre ser egoísta e altruísta, porque quero que você esteja no hospital com meu irmão, esteja conhecendo aquele pequeno ser que chegou ao mundo hoje e nunca te conhecerá e nunca irá rir de piadas suas. Mas, também quero que você esteja aqui, na cidade cheia de prédios, encharcada de tristeza e silêncio, que você esteja comigo, e também quero que esteja onde você precisa estar, junto daquele que nunca foi amado de verdade por quem deveria ser amado, daquele que está crescendo meio na dor, meio na alegria, meio... não, meio não, completamente envolto de saudade de você e do que você foi, acho que ele precisa de você mais do que eu preciso, embora eu sempre precise de você de uma forma absurda.

"É da família de seu Raimundo?"

eu peço, eu imploro que pare e pare e pare, mas sua falta é uma constante, um misto de raiva, de tristeza, de inconformação, um misto que eu não consigo lhe dar depois de quase dois anos.

"Mas mãe, essa é minha última noite dormindo perto do meu pai, me deixe ir"

E então eu não vou, e então durmo em casa mesmo, cansada, exausta e totalmente alheia que eu não vou mais te ver, ainda totalmente alheia que eu não vou mais te ver.

e no outro dia

"Eu matei meu pai" -eu digo a terapeuta

como se eu tivesse o poder para tudo isso e um pouco mais e ainda tenho dificuldades em me livrar desse pensamento horrendo e tão pesado que me cerca toda vez que ele não está aqui.

Você sabe que eu tentei, eu estive lá na última semana, você sabe, é irónico eu ter que escrever sobre pneumonia agora e não conseguir um parágrafo sem chorar, porque eu pegaria de novo e de novo e outras mil vezes por você, por umas horas perto de você em um hospital totalmente contaminado e minhas imunidades totalmente despreparadas para as noite mais longas de nossa vida. 

Ouço tosses no quarto, não são suas, não, vindo de você eu só ouço os gritos, as alucinações e está tudo bem.

"É da família de seu Raimundo?"

por favor, não fale o resto, eu já sei o que vem a seguir

mas ela fala

e eu revivo esse dia quase todos os dias e e ele nunca parece menos doloroso.

Seu segundo neto nasceu hoje, sua filha está sozinha em uma cidade grande e está totalmente apavorada, seu filho mais velho precisa de uma luz, seu primeiro neto precisa de um abraço e da forma mais resumida possível: Só vocÊ poderia dar o que estamos precisando desde que você partiu.

Eu sinto sua falta dia 29 de março, dia 30 de maio, dia 01 de agosto, dia 25 de dezembro, dia 31... sinto sua falta todos os dias e recontando e recontando.

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